Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhe o corte
o brilho
cego
(Ana Martins Marques)
Quebrar
o silêncio não é algo fácil, porém necessário. E o problema não está somente na
produção do som; talvez a sua intensidade esteja alojada ainda mais funda, nos confins
e contornos que o silêncio desenhou. Por isso, certamente, que com a tal quebra
do silêncio, com a produção da palavra, muito do que queremos dizer não aparece
de forma explícita, a intencionalidade primeira parece esconder-se por detrás
de cada palavra dita, escrita – a intencionalidade é da ordem do silêncio.
Provavelmente, esta seja uma das razões que justifique essa necessidade e desejo
humano em querer dizer, mesmo em palavras não ditas. E para captar essa
indizível, porém latente intencionalidade, o poema parece nos dar uma boa
pista. Mas não é tão fácil quanto parece juntar os cacos do silêncio com a
argamassa da palavra. Isso requer talento, sensibilidade e risco. Veja como faz
o arguto arquiteto que, suficientemente habilidoso e espirituoso, traça os
movimentos interpretados por sua percepção da vida, suportando os riscos das
possíveis opacidades que seu projeto possa apresentar. E a natureza da
palavra parece carregar também certa dose de opacidade. E para comprovar esta
constatação, basta apenas observar o quanto sua utilização pode suscitar
mal-entendidos. A palavra nunca está sozinha, ela se avizinha e tece suas
sombras com o colorido dos diversos sentidos que o contexto possa lhe oferecer.
(Certamente por isso que a utilização da palavra seja um traço fundamental na
definição do homem enquanto ser gregário, relacional, provisório e
multifacetado). Por esse motivo que na construção do sentido, a partir da
quebra do não dito, as fissuras, as clivagens são por demais necessárias; elas que
vão permitir ao outro o acesso à intencionalidade da palavra, vez que implícito
está os seus muitos sentidos. A trama interpretativa se dará, portanto,
entre silêncio e palavra. Às vezes, tenho a impressão de que a palavra em
si, o que se nos apresenta empiricamente através do texto – falado ou escrito –,
uma vez liberto do seu autor, tem o seu sentido deslocado, desconjuntado,
possibilitando que, em sua viagem, incorpore diversas vozes, vários sons,
outros tons. E a cor da palavra ficará ao gosto de cada intérprete, e o intérprete
irá fazê-lo bem se bem auscultar o som inaudível do silêncio que intercala a
palavra. A interpretação do silêncio produzido em palavra, ao que parece,
necessita de um cálculo preciso e sensível – preciso no fazer e sensível no
dizer. Poder-se-á, assim, tecer o silêncio, selecionar-lhe o melhor
remendo, tricotear por sua superfície, desafiar a fio o seu tecido difuso...